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DESVENTURAS EM SÉRIE

NOTA 10,0

Junção de enredos de três
livros infanto-juvenis resulta
em excelente filmes que mescla
comédia e suspense com perfeição
Existem estilos de filmes que marcam determinadas épocas e sem dúvida a primeira década do século 21 foi marcada pelo gênero fantasia e adaptações de uma literatura que dificilmente cai no gosto dos críticos especializados, mas encontra as atenções que merece por quem realmente importa: o público. Os longas acerca de circunstâncias fantasiosas e oníricas bombaram nos anos 80, como A História Sem Fim e A Princesa Prometida, e em pleno início do século 21 eles continuam com tudo tendo como suporte a literatura. Visando lucrar não só no escurinho do cinema e com a venda de mídias domésticas, mas também com bugigangas e produtos alimentícios, por exemplo, muitas produtoras e estúdios bancaram as adaptações de livros que não raramente caíram no gosto popular, porém, nem todos os filmes representantes dessa corrente foram sucesso ou alguns precisaram da ajuda do tempo para consolidar-se. Desventuras em Série é um título de destaque desta safra, ainda que sua publicidade não tenha tido o alicerce de um conglomerado extra de produtos como mochilas e lancheiras para garantir sua longínqua vida. Contudo, até hoje ele permanece vivo na memória de quem o viu e aguçando a vontade de novos espectadores simplesmente com sua história deliciosa e criativa que mescla fantasia, humor e suspense em doses generosas para agradar crianças e adultos. Baseado na série de livros “A Series of Unfortunate Events”, de Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler), o longa conta a história dos irmãos Baudelaire, Klaus (Liam Aiken), Violet (Emily Browning) e Sunny (Kara e Shelby Hoffman, gêmeas que se alternaram nas filmagens), que repentinamente recebem a notícia de que seus pais morreram em um incêndio. Como são menores de idade eles não podem herdar a fortuna da família até que Violet, a mais velha dos três, completar a maioridade. Enquanto isso, eles devem ficar sob a tutela de algum parente. Assim, as crianças são levadas pelo Sr. Poe (Timothy Spall), um amigo da família, para morar com o Conde Olaf (Jim Carrey), um parente distante, muito ganancioso e esquisito, que deseja tomar a fortuna deles. Para isso, ele não medirá esforços para se livrar do trio. Começa assim a peregrinação das crianças em busca de uma vida digna de casa em casa de parentes excêntricos e desconhecidos, mas sempre com Olaf por perto preparando alguma armadilha afinal se nenhuma das crianças existissem um outro parente poderia usufruir do benefício legalmente.

Até o ano de lançamento do filme já haviam sido publicados onze exemplares da série literária (a previsão é que no total seriam 13 volumes), mas o diretor Brad Silberling optou por combinar eventos que ocorrem nos três primeiros livros intitulados “Mau Começo”, “A Sala dos Répteis” e “O Lago das Sanguessugas”. A narrativa adaptada com maestria por Robert Gordon não é fragmentada para destacar cada um dos enredos, pelo contrário, eles são unidos com perfeição. Carrey, mais uma vez com suas caras e bocas, se desdobra para dar vida a diversos e excelentes personagens, mas todos oportunistas. Onipresente em quase todo o filme, o ator ganha companhias ilustres em dois atos. Billy Connolly surge como o Tio Monty, um apaixonado por natureza e animais, principalmente pelas serpentes, e temos a inusitada presença de Meryl Streep como a Tia Josephine, uma senhora neurótica por manias e cuidados exagerados. Compilar em pouco mais de uma hora e meia tanto material não é tarefa fácil e obviamente muito foi cortado, o que gerou certas reclamações dos fanáticos pelos livros, mas são detalhes mínimos. Um ou outro cenário não entrou na história, alguns detalhes dos personagens foram modificados, cenas consideradas importantes foram descartadas e até o tom melancólico das obras foi atenuado. São observações de quem procura pêlo em ovo. O que importa é o resultado final e isso não há como negar que é extremamente satisfatório e quem nunca sequer ouviu falar na série literária não precisa se preocupar. Embarcar nesse mundo melancólico e ao mesmo tempo excitante é tão rápido quanto a introdução do longa que apresenta uma simpática animação com um elfo feliz cantando e saltitando por uma floresta que tira sarro dos sucessos da época, como as cinesséries Harry Potter e O Senhor dos Anéis e porque não até do estilo Disney de fazer cinema. Nesta sequência o narrador (Jude Law fazendo as vezes do próprio autor dos livros) já nos avisa que a história a seguir não é nada alegre e colorida. Não se espante. O aviso é para preparar o clima, pois o conto é cheio de tristezas e perigos. Os tons escuros dos cenários e figurinos predominam do início ao fim, mas a diversão é garantida. Todavia, será que muita gente só chegou até os cinco minutos de exibição, desistiu e fez um boca-a-boca contra o filme? Não sabem o que perderam, mas sempre é tempo de correr atrás. Previsto para estrear por volta do ano 2000, o longa acabou tendo sua produção adiada devido ao início da série do bruxinho mais famoso do mundo. Como ambas as produções visam o mesmo tipo de público, temia-se que as desventuras das crianças órfãs levassem uma surra do bruxinho em vários sentidos. Foram espertos os produtores. Hoje em dia, longe da época efervescente de elfos, fadas, trolls e companhia, podemos perceber com mais clareza que a mistura de gêneros proposta nesta obra funciona muito bem e com fôlego para conquistar novas gerações por muito tempo. Com uma história com começo, meio e fim, qualquer um pode se dar o presente de viver esse divertido pesadelo em qualquer época sem medo de se perder, bem ao contrário do concorrente citado, uma série longa e cujo entra e sai de personagens podem atrapalhar. 

Infelizmente, esta aventura não fez o sucesso esperado nos cinemas, mas merece uma segunda chance daqueles que na época do lançamento estavam enfeitiçados por bruxinhos e hobbits que dominavam a mídia. É uma pena também que os anos passam e nem sinal das outras histórias ganharem sua versão cinematográfica, o que já indica que algo saiu dos eixos na produção, provavelmente por causa dos lucros que não cobriram significativamente o que foi investido (quem ama a produção e a assistiu através da pirataria deu um tiro no pé). Além do excelente texto e das interpretações vigorosas do elenco, embora Carrey exagere em algumas cenas, merece destaque a parte técnica. Os figurinos, cenários, acessórios e detalhes, enfim toda a ambientação tem uma atmosfera que deixa no ar certo mistério, parece que sempre algo está para acontecer. Quando as coisas estão entrando nos eixos, a virada negativa não tarda a acontecer. O estilo adotado para a produção é fiel ao espírito do livro, mas também parece algo digno das excentricidades de Tim Burton. Certamente o diretor deve ter servido também como inspiração para a criação, mas bem que seria interessante se o próprio tivesse tomado as rédeas do projeto e tivesse escalado Johnny Depp para viver o vilão com pinta de palhaço. Neste caso, o Conde Olaf estaria bem mais parecido com o Willy Wonka de A Fantástica Fábrica de Chocolate, claro que reprimindo um pouco os trejeitos. Como Hollywood está vivendo de refilmagens praticamente, quem sabe ainda teremos no futuro a chance de ver a versão de Burton desta história que é sua cara. Se ocorrer, que nos poupem dos efeitos 3D, e no caso de reestréia do original também, afinal o aspecto artesanal é o grande charme de Desventuras em Série que resgata o espírito de uma agradável sessão de cinema para toda a família assim como os grandes clássicos infanto-juvenis oitentistas ainda proporcionam. Diverte e ao mesmo tempo carrega um toque sombrio que jamais assusta, mas sempre deixa o coração de quem assiste na expectativa de que algo tenebroso irá acontecer. No conjunto, o alto astral impera. Poderia até ser intitulado de “Super Baudelaires Contra o Baixo Astral”... Ok, trash demais, ainda que defina bem a proposta da produção, mas o título nacional adotado felizmente foi bem escolhido. Seja pela ação da pirataria (sempre é bom lembrar que downloads ilegais também são crimes) que atrapalhou as finanças ou até mesmo desinteresse dos envolvidos em darem continuidade a série, o fato é que muitos fãs tanto dos livros quanto dos filmes se sentiram decepcionados. Com a decisão de existir apenas um único filme, fique bem claro. Agora, se você é um daqueles que se assustou com o semblante de horror ou depressivo que a campanha publicitária do longa tratou de propagar na época do lançamento, não se preocupe, é puro marketing ou fantasia dos criadores. Pode assistir sem moderações.

Vencedor do Oscar de maquiagem

Aventura - 108 min - 2004

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